Abril

Abril é um mês bonito. Sem qualquer razão acrescida para isso, mas com todas as memórias disso. É relva, são pássaros em parábolas de asa e gorjeios entrelaçados nas flores. São jogos. Da corda, do arco, pião, da cabra-cega e dos futebóis de muda aos três e acaba aos seis. São janelas abertas com roupa às cores à carícia da brisa. Marmelada ao sol, amêndoas e rebuçados do Senhor dos Passos, à beirinha das marés que já lá vêm. Também é chuva no telhado e rios de água com barquinhos de papel, nas bermas dos passeios. São os pequenos  sóis que ficam e pingam das folhas depois do chuveiro matinal. Nevoeiro na serra e a natureza a prender nos outeiros uma fita de arco colorido que lhe segure os cabelos molhados. É cheiro que fica da terra, revolvida há poucochinho tempo. Chega o cuco, que as tardes são dos melros e chapins. São as azáleas depois das mimosas, olaias antes dos rododendros, tulipas e amores-perfeitos, lilás, o verde claro e brilhante das primeiras folhas, mais a fragrância da flor ao sol que já aquece.
Abril são regatos, levadas, ribeiros e açudes. Agrião nas margens. Pingos d’água, pincéis minúsculos sobre o manto esmeraldino do campo. Crescenças em carreiros certinhos nos viveiros. Ancinhos, pás, ferros, arados, ao sol da espera, já fora do guardado. Abril é lama, nos pés e na cozinha. O fumo do lar dança pela chaminé e abraça  a neblina que joga ao esconde-esconde no souto, à orla do monte. São manchas de terra na roupa e nos joelhos. Uma esfoladela que arde, mas não dói. São espantos a seguir pardais e lavercas que carregam palha e barro para debaixo dos beirais da varanda. De olhos abertos pendura-se a certeza que é Abril de chegarem as andorinhas.
Abril é um mês bonito. Um mês de grande agitação. É a porta por onde entram e saem todos os meses do meu calendário.

em linha

Do outro lado da vereda que segue a traseira da minha casa, é o campo de cultivo do senhor Inácio, com quem às vezes debulho agradáveis palraduras.
Um destes dias dei comigo a matutar sobre os donos que, antes dele, também ali semearam milho, abóboras, centeio, batata, cebolo, tomate, couve e feijão, ou apenas afagaram o feno para sustento do gado.
Provavelmente aquela leira, aquela terra, já era sulcada e sachada há quatro mil anos. Imaginemos se todos os agricultores que aí semearam e colheram, viessem fazer uma visita ao senhor Inácio. Assim, feitas as contas de grosso modo, estaríamos a falar de umas cem, cento e cinquenta pessoas. Uma imediata evidência seria ficarmos presos ao modo tão diferente de se vestirem e de muitos, muitos mesmo, não serem capazes de entender uma só palavra, de tanto que se foi alterando a língua através dos anos.
Uma ideia, no entanto, assarapolhou a minha imaginação: se os dispuséssemos em linha, cada um perto do outro, começando pelo primeiro dono, passando ao segundo, depois o terceiro e assim por diante até ao senhor Inácio, a conversa podia ser seguida ao longo de toda a fila, poderíamos ouvir contar histórias e vidas de um extremo ao outro. Além dessa brutal e incomensurável visão da História, certamente que todo o comprimento da linha ficaria envolto numa onda de fresca jovialidade à medida que o relato passasse de homem para homem, ali mesmo,
através dos séculos.