(…) à volta do tablado postaram-se os juízes do crime, aconchegando as capas das faces varejadas pelas cordas da chuva.
Havia uma escada que subia para o patíbulo. A Marquesa apeou da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço de cinquenta minutos. Entretanto, aqui e ali, martelava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se pregos necessários à segurança dos postes, aparafusavam-se as roscas das rodas. Recebida a absolvição, a padecente subiu, entre dois padres, a escada, na sua natural atitude altiva, direita, com os olhos fitos no espectáculo dos tormentos.
Trajava de cetim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos, envolta em uma capa alvadia roçagante. Assim tinha sido presa, um mês antes.
Receberam-na três algozes no topo da escada, e mandaram-na fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida. Depois mostraram-lhe um a um os instrumentos das execuções e explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus filhos e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o maço de ferro que havia de matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito, as tesouras ou aspas com que lhe haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostraram, e o modo como ela repuxava e estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou muito ansiada e pediu que a matassem depressa.
O algoz tirou-lhe a capa e mandou-a sentar num banco de pinho, no centro do cadafalso, sobre a capa, que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ela sentou-se. Tinha as mãos amarradas e não podia compor o vestido, que caíra mal. Ergueu-se, e com movimento do pé concertou a orla da saia. O algoz vendou-a; e ao pôr-lhe a mão no lenço que lhe cobria o pescoço –não me descomponhas– disse ela, e inclinou a cabeça, que lhe foi decepada pela nuca, dum só golpe. (…)
Camilo Castelo Branco
A perversidade humana é ilimitada.
Cadinho RoDo
Como o outro blogue é só para quem tem convite e aqui já comentei, limito-me a desejar uma boa semana.
Tão cruel quanto arrepiante. De quanta perversidade é capaz o ser humano! Inimaginável.
Um abraço
Bem-hajas!
A que ponto o ser humano é cruel com o seu irmão…
Um abraço e bom Domingo
À margem: A frágil saúde de meus pais, ele internado no hospital e ela em casa, mas totalmente dependente, não me teem deixado tempo para visitas.
Passaram séculos e a maioria dos humanos comporta-se como “bestas”, desde que surja ocasião. Se nos puseram na Terra para evoluir, ainda falta muito.
Apesar de duro, é bom recordar.
não estava à espera de ler isto neste momento…
um excelente mas terrível descrição de C C B
e sempre em nome de algo!!!
Ainda há o que nos doa ao “ver”, afinal. Nada má notícia, num presente de tanta insensibilidade.
E ainda há, ao alcance da nossa mão, literatura capaz de nos fazer sentir tanto. De novo, nada mal!
E ainda há quem não leia, quem perca toda essa parte…!
Magistral narrativa. O dia vive hoje cinzento, frio e ruidoso, servindo um cenário perfeito à sua leitura. Já à tua leitura, todos os dias servem bem, se queres saber.
🙂
Um abraço.
Povo de brandos costumes?!
Quem diria…
Uma malvadez!
Abraço
era um tempo malvado, esse da decapitação…
Fico descomposta com estas tragédias.
Ai Camilo!
(arrepio)
Abraço
…e a Igreja sempre conivente com estas crueldades!
Tudo de bom.
Um relato no melhor português de Camilo. Pode ser arrepiante e injusto o que se passou, mas não podia estar contado de uma maneira melhor. Um abraço.
História com sentimentos lá dentro, vivos e ferozes, esta que nos trazes hoje. Grande página de CCB!
Abraço
Com requintes de malvadez…
Ainda arrepia, passados que são 250 anos!
Um abraço
Camilo no seu trágico melhor. Uma escolha não muito agradável, para estas noites em que apetece adormecer e se sente um friozinho no pescoço!
Abçs
É terrível ler estes relatos…eu fico mesmo sem palavras e sem pinga de sangue. É demais!! Beijos.
Que requintes de malvadez! Mas suponho que eram os costumes da época. Verdade se diga que o Marquês não era flor que se cheirasse nestas coisas. Mas teve muita importância noutras. Vá lá julgar… **