Novembro é, talvez, o mais profícuo e também o mais heterogéneo mês da tradição popular. Começa no culto dos Santos e na memória dos familiares e amigos já desaparecidos para, ainda mal vencida a primeira dezena dos dias, se deixar envolver nos folguedos vindos dos rituais pagãos, agora evocados em honra do bispo que é S. Martinho (Pelo S. Martinho é lume, castanhas e vinho), e apronta-se a jeito para terminar o mês, de sovelão na mão, a modos de imolar o ‘russo’ no matadelo, ou não fora que no Santo André, faz o porco cu..é, cu…é.
Já quase perdida no tempo (ou na modernidade, como se queira…), pelos Santos e pelos Fiéis, havia o hábito – há relatos da primeira metade do séc. XVI – de repartir pão e outros alimentos pelos mais necessitados e, pelos vizinhos e amigos, distribuir regalos da copa e da frasca familiares: os bolinholos ou bolinhós, uma espécie de pão doce, cobertos de geleia ou massa de açúcar. Mais pelo interior, em algumas vilas e aldeias, nas igrejas, as confrarias e as congregações distribuíam os santoros, bolos de forma alongada, de pão e azeite, benzidos nas missas da matina. Com muito sumida revivescência, subsiste aqui e além, nalgumas terriolas das Beira Alta, o pão-por-Deus ou o santorum. Já poucos se lembram, do Alentejo ao Algarve, pelo dia dos Santos e dos Finados, ver a garotice, munidos de saquitéis de chita barata, percorrer o casario, as quintarolas ou os solares ricaços, pedinchando de porta em porta, arengando em coro:
Ó tia, pão-por-Deus!
Se o tem e o quiser dar,
Deus lhe acrescentea massa do alguidar;
Se o tem e nã quer dar,os ratos le comama massa do alguidar!
Quase sempre havia uma fatia de pão barrada com mel, uns figos passados, castanhas, peros ou nozes, mesmo que distribuídos à mingua. Mais acima, no litoral das Beiras, por esse tempo, a pedinchice era feita com uma outra lamúria em versos obscuros e estropiados:
Pão-por-Deus à mangarolaencham-me o saco e vou-me embora!
Se alguém ousasse recusar oferenda, não ficava sem ouvir o protesto com prenúncios de malefício:
O gorgulho, gorgulhotele dê no potee le não deixe farelonem farelote!
Ainda pelo Alentejo, a criançada empregava, para o mesmo fim, outra cantilena assim:
Senhora, dê-nos os Santos,
por alma dos seus defuntos,
que lá estão enterrados
aos pés da bela Cruz…
Para sempre, Amém Jesus!
Curioso era o costume coimbrão. A garotada improvisava, com duas varolas e uma tábua, uma rudimentar padiola. Sobre ela, à laia de santo em procissão, instalavam uma avantajada abóbora porqueira, que previamente desmedulavam e colocavam-lhe uma lanterna no interior oco. Para completar o efeito, cavavam-lhe dois grandes orifícios que tapavam com papel acetinado vermelhusco, simulando as órbitas vazias de uma caveira (o Halloween seria importado muitos anos depois, com os modernismos e os comércios americanos!…). Brincalhões e contentes como pardejos, saiam em séquito, pelo cair da noite, percorrendo porta a porta, sempre na expectativa de que lhes distribuíssem guloseimas, iam cantarolando uma toada parecida com a que se trauteava pelo Alentejo. A diferença era na resposta se os intentos não fossem correspondidos. Aí a serrazinada era um tudo-nada semelhante com as Janeiradas, do ciclo natalício:
Aqui cheira a alho,
mora aqui algum dialho;
aqui cheira a louro,
mora aqui algum besouro;
aqui cheira a breu,
mora aqui algum judeu;
aqui cheira a unto,
mora aqui algum defunto.
A seguir, poucos dias passados, chega o S. Martinho, dia em que se fura o pipinho e que se vai à adega e prova o vinho. É o pretexto para verrumar o tampo do vasilhame – o espicho, e para a merendola festiva: o magusto. Os festins estendem-se, um pouco por todo o lado, à volta das castanhas e dos garrafões de água-pé.
Nalgumas aldeias da Beira Baixa era tradição fazerem, em vez de um, sete magustos, preferindo para a folia o dia de S. Simão (28 de Outubro), como se dizia então que pelo S. Simão, quem não assa um magusto não é bom cristão. Por vezes, nesse dia, o tempo apresentava-se mau e desabrido. Diziam, então, os beirões que era S. Simão a varejar os soitos. Mais para cima, lá para os lados do Barroso, se pela folia do S. Martinho se achasse mulher prenhe, é certo que ela iria rebuscar, entre as castanhas falhudas, os funchões e as folecras para serem lançadas ao lume depois de bem molhadas com saliva. Se bufassem, era rapariga, mas se entumecessem e estoirassem, então era mais do que certo que viria aí um mocetão!…
E, na próxima, tratamos do Santo André. Ou do ‘russo’, está bom de ver…
Deixam perder no tempo da memória as coisas nossas e andam atarefados a ‘importar’ e avivar memória do que é dos outros.
Há coisas do arco da velha!!! 🙂
Excelente de ler, como sempre!
Beijo.
Ismar
Ora essa do menino a fazer de santo (ou as vezes da abóbora), não sabia, não! A cantilena, essa sim, já a tinha lido. As tradições, de facto lá se vão perdendo, é verdade. O estranho é que se vai longe buscar coisa semelhante… 'Coisas do Arco-da-Velha', não é?…
Obrigado pelas palavras, Ismar!
abraços!
Arménia Baptista
E se fosse só o 'Halloween'!…
Obrigado, amiga!
abraços!
Justine
Também nem todas as cantilenas têm de ser muito elaboradas; temos que aceitar que, alguns, não estão para esforço em demasia. Espertos!…
Mas fazes bem, em dar, claro!
abraços!
Violeta
Então espera para veres o que é; pelo Santo André…
Boa semana, também para ti!
abraços!
elvira carvalho
Esses tempos foram tremendos para muita gente, é verdade. Coisa que, hoje, quase ganha contornos de ficção, tal a distância e o desvanecer da memória. O que não é bom.
Boa semana, também para ti!
abraços!
Rosa dos Ventos
É bom que seja assim. E que haja quem a preserve. O dia do Santo André, esse já o tinha referenciado nos 'provérbios', em Novembro do ano passado…
abraços!
Dulce
Tanto quanto me é possível, lá vou recolhendo aqui e ali. Mas, é verdade, muito se vai diluindo pelo passar do tempo. E é pena!
abraços!
Baila sem peso
Pelas linhas do meio do teu versejar apanhava eu mais castanhas do que debaixo do castanheiro!…
Mas olha que castanha não é dura de roer, não! Ora põe lá água na panela, um dedito de sal e um molhinho (não muito, que os intestinos não gostam de exageros…) de funcho (lá para os meus lados minhotos chamam-lhe 'fruncho'), põe as castanhas e 'bota' tudo ao lume até as castanhas terem boa cozedura. E diz-me lá se são duras! Ah!, e não te esqueças de por ao lado um copo para a água-pé ou jeropiga…
Que te saiba bem!
abraços!
Menina Marota
Bolo de castanhas, é isso! Há muito tempo que não como! È bom, é!
Não me importo nada, claro. E porem as questões, lá isso podem por; não garanto é a resposta, claro! Nem sempre consigo encontrar o fio à meada!
abraços!
a todos quantos por aqui passaram
O meu agradecimento. Voltem sempre.
Tinta Permanente
É sempre um prazer ler… confesso de desde menina o S. Martinho lembra-me a casa do meu Avô… onde ia tudo para lá e era uma festa…e do grande bolo de castanhas que a Srª. Engrácia, a empregada do meu Avô fazia para a pequenada….
Bjinho e espero que não te importes que tenha levado para o Facebook a tua página… há lá já quem gostasse de te colocar algumas questões :-)))))))
Útil e outras diferentes naturezas
Tem este mês, nas suas certezas!!
Os Santos o bafejam com a sabedoria
Que vem da gente do povo, em alegria
Algum Deus, o bem lhe encontraria!
Quiçá talvez porque antecede o Natal
Neste cantinho do nosso litoral
E se preparasse a festa antecipada
Para o nascimento, de folia fadada?!…
Talvez…os Santos todos viessem
Fazer uma limpeza, e deixassem
O espaço risonho e aconchegadinho
Para que no final do ano, limpinho
Fosse celebrado outro evento
Com mais histórias no vento?!…
Talvez, até almas neste nascessem
E o futuro cantasse, olhos de melodia
Que aqui ao lado eu também a ouvia
"Quando eu era pequenina…"!!
Meu avô diria talvez, como quem ensina:
Mês que terá lá, os seus porquês!!!
E no nascer, vá lá então Era uma vez…
Ah, e a castanha! É boa na apanha
Mas dura de roer, para quem não tiver
Um bom dente para o fazer!
Beijo com amizade, já final de mês na verdade!
São lindas essas festas, essas tradições populares, e que pena que andem se perdendo pelos tempos.
Excelente, como sempre, esse seu texto que tanto nos ensina sobre a história, os usos e os costumes de seu Portugal.
Um abraço
Por aqui a tradição ainda é o que era!
Obrigada por tanta e boa informação!
Fui ao Borda D´Água para ver quando era o Sto. André, não fazia a mínima ideia que era a 30 de Novembro…
Abraço
Excelente texto. Eu lembro quando era menina, que gostava tanto de ir pedir o pão por Deus. Ganhava frutas e doces a que não tinha acesso no resto do ano pois meus pais eram muito pobres, e nós (éramos 3 irmãos)vivíamos quase miseravelmente.
Um abraço e uma boa semana
Esta do Stº André é que eu não sabia…
Boa semana
Tão belas, todas estas tradições que aqui nos contas. Felizmente que muitas ainda estão bem vivas. Aqui na aldeia a cantilena é "Oh tia dá bolinho" e lá aperecem os bandos de crianças com os sacos de pano jardi dentro…e eu dou, claro:))
Abraço
…Afinal não precisavamos de importar o "Halloween"?!…
Já tinhamos o nosso!!!
Mais uma história interessante…
😉
Aqui pelo Algarve lembro-me que, há muitos anos, a garotada improvisava, com dois troncos e uma tábua, uma padiola sobre a qual colocava ,à laia de santo, um pequenito de seis/sete anos e percorriam as casas vizinhas cantando:
S. Martinho vinho
vamos ao copinho
S. Martinho lapa
vamos ao larapa
A vizinhança dava-lhes doces e algumas moedas com as quais compravam guloseimas no dia seguinte.
Tradições que se vão perdendo no tempo.
Bem-hajas por mais um excelente post.
Um abraço