Os portugueses são todos uns bem-dispostos, diziam os franceses referindo-se à tradicional bonomia do povo português. Na verdade, as classes pobres procuram nas diversões o esquecimento das suas necessidades. De quase todas as casas sai gente que, em folguedos simples, vai às romarias encontrar lenitivo para as suas contrariedades.
Sempre foi assim. Os santos populares festejam-se com ingénuo paganismo, em Lisboa na véspera e no dia de Santo António, no Porto na véspera e dia de S. João e sejam estes ou, ainda, S. Pedro, um pouco por todo o país o mesmo se repete há tempos já esquecidos…
O portuguesíssimo Santo António, nascido em Lisboa, pouco mais de 50 anos depois de o rei Conquistador a ter usurpado aos mouros, é entronizado nas mil igrejas de Portugal, nas casas, nos corações e nas preces de muitos e muitos milhares de lusos que ao simpático taumaturgo oferecem os seus pedidos e as suas ilusões.
Fiquemos, pois, naturalmente, só por Lisboa (que do Porto já se escreveu!).
Já no século XV, ali para os lados do Loreto, existia uma ermida de Santo António onde as meninas casadoiras iam solicitar ao bondoso santo a satisfação plena dos seus desejos. Durante a dominação filipina –e bastantes anos seguintes– uma procissão chamada Ferrolho, punha em alvoroço a turbulenta Mouraria de então. Saía de noite, de Santo António da Sé e terminava na Penha da França. A rapaziada que acompanhava o cortejo religioso entretinha-se a bater no ferrolho de todas as portas. Daí o nome pitoresco da procissão, que só veio a acabar na segunda metade do século XIX.
São muitas, tantas, as curiosas histórias de homenagens que o povo, e a nobreza também, tributavam aos santos populares, durante o mês de Junho…
Conta-se que com apenas 15 anos estreou-se numa tourada o garboso fidalgo D. João de Meneses, na mesma onde toureou o Conde de Vimioso, por quem palpitavam muitos corações femininos. Até um rapaz, de apelido Cabral, inventor da pega de cernelha, fez prodígios de valentia. Diz a história que, nessa corrida, o Vimioso quebrou sete rojões e a Severa ofereceu-lhe uma coroa de alhos! Teria sido verdade? Eduardo Noronha afiança a história e diz que, num valado, depois de um lauto jantar, o fidalgo e a musa do fado levaram a noite inteira a tocar e a cantar.
Mas, o centro de todos os festejos era o mercado da Praça da Figueira. Nos anos de 1880, em nada se assemelhava àquela que, depois, o camartelo municipal destruiu para substituir pelo então chamado Chão de Loureiro. Escrevia-se a propósito ‘uns portões pífios e inestéticos a taparem a entrada e, dentro, uns enormes chapéus-de-sol a cobrirem as hortaliças e a criação’. Uma gravura da época, publicada na revista Ocidente, mostra como ele era diverso do mercado que havia, mais tarde, de se tornar bem conhecido com os seus quatro torreões armados…
Mas, voltando ao tempo e aos festejos populares: um coreto, meio improvisado no meio do mercado, sanfonava a Alma de Diós, música que avassalava multidões. Balões e grinaldas por todas as traves altas do mercado. Apitos, gritos, cornetas de barro, uma algazarra de endoidecer e todos porfiavam em berrar cada vez mais e mais, e tudo em louvor de Santo António, S. João e São Pedro, os santinhos do povo.
O resto era arraial nocturno, com as pipas do saboroso carrascão, os pimentos a embrulharem as sardinhas e a boroa e os pequenos pires de arroz-doce a tentarem os gulosos mais apressados. A certa altura, à conta de uma musicata mais a propósito os pares enlaçavam-se, criadas de servir com a soldadesca e costureiras com operários…
Não se pense que, nesses tempos era só coisa de pé rapado, não! Nos finais do século XIX, em vésperas de Santo António, à tardinha, a rainha D. Maria Pia, descia do seu palácio até à Praça da Figueira. Quando a esposa do rei D. Luís se apeava da sua carruagem para entrar no mercado, a curiosidade era enorme: a realeza, descia à rua e vinha democratizar-se no convívio do povo. Três ou quatro camareiras acompanhavam a soberana, distribuíam-se sorrisos e acenavam-se lencinhos de seda e cambraia fina. A rainha comprava um manjerico, divertia-se com as chamadas quadras de pé quebrado e o povo envaidecia-se de ter a sua rainha ao pé… Lindo de ver!
Nesse tempo, nessa velha Lisboa, os mais concorridos e populares arraiais de Junho faziam-se na antiga Praça da Alegria, por essa altura completamente ampla, sem lago nem jardim. Ao fundo armava-se uma capela de madeira, que se desarmava depois da noite de S. Pedro. Estava na moda o fogo-de-artifício, mas como o espaço do jardim era pequeno, queimava-se em baixo, em frente ao Passeio Público.
Mas o mês de Junho lisboeta tinha, além dos três santinhos da sua devoção, um outro a quem também não lhe regateavam festejos: S. Jorge a quem faziam uma exuberante procissão, por alturas do Corpo de Deus, mas que há mais de um século deixou de existir! Tantas inclemências passou o desditoso santo: tiraram-lhe os diamantes do seu aparatoso chapéu de gala e, durante a invasão francesa até foi vítima de vários desacatos. Mas, apesar de tudo, as ruas da baixa até ao Castelo, enchiam-se de uma multidão gulosa daquele espectáculo com certo sabor medievo: os fatos garridos dos pretinhos tocando tambores e pífaros; um pajem montado num cavalo ajaezado a primor; os estribeiros da Casa Real, levando à rédea os corcéis empenachados e, finalmente, o célebre Homem de Ferro, um honrado sapateiro a quem davam duas libras para se meter na armadura. O famoso guerreiro era positivamente atarraxado a um luzido cavalo. O santo padroeiro das batalhas portuguesas teria honras de general e as tropas apresentar-lhe-iam armas.
Crê-se que a última vez que S. Jorge se passeou na cidade foi em 1910, o ano da República. Calaram-se, assim, os charameleiros e os pobres pretinhos que ganhavam cinco réis por dia. S. Jorge deixou de fazer as suas reverências ao povo e até a Igreja o tirou do altar. Enquanto os três santos populares têm os seus fiéis de todo o ano, mesmo que lhe mudem os festejos, os louvores, as preces ou os folguedos, o valoroso guerreiro que a Ala dos Namorados evocou nos campos de Aljubarrota, vive abandonado pelos portugueses. Arranjaram outro santo, foi o que foi! Tudo vai mudando…
No próximo ano celebra-se o cinquentenário da morte de António Correia de Olivieira que dizia liricamente, em inspirada quadra:
Fora a vida um mês de Junho,
bem se levava a contento;
São Pedro abria-nos o céu,
Santo António o casamento.
.
já que estamos em maré de quadras…
santo antónio e são joão
com são pedro combinados
entraram na reinação
da roda do namorados
fez-se tarde, escureceu
beijei-te a boca rosada
santo antónio olhou p'ró céu
e fingiu que não viu nada
estas até foram postas num vasinho de manjerico… 🙂
Mouraria garrida,
Muito presumida,
Muito requebrada,
Com seu todo gaudério,
Seu ar de mistério,
De moura encantada!
É como um livro de novela,
Onde o amor é lume
E o ciúme impera!
Ao abrir duma janela
Parece o vulto
Daquela Severa!
A marcha da Mouraria
Tem o seu quê de bairrista!
Certos ares de alegria,
É a mais boémia,
É a mais fadista!
Anda toda encantada,
De saia engomada,
Blusinha de chita!
É franzina, pequena,
Gaiata e morena,
Cigana e bonita!
Tem a guitarra pra gemer
Um amor sublime
Que nunca atraiçoa!
Esse bairro deve ser
O lindo ou mais castiço
Da velha Lisboa!
🙂
Um dia, também fiz uma quadra ao Santo António para um concurso.
Santo António coração d'ouro
Não faltes ao prometido
Eu te dou um tesouro
Tu me arranjas um marido.
Adorei este texto que me
levou numa viagem pelo tempo à Lisboa de outros tempos.
Um abraço
pois, são jorge passou a ser santo de 3ª categoria. e os festejos desta época, que substituíram outros, mais antigos, também vão perdendo o seu tradicional espírito.
nós, cá no jardim, apreciamos muito a noite de são joão. e esperamos que as simbólicas fogueiras se ergam, e que as chamas, onde arderão grinaldas de verbena e rosmaninho, lembrem aos homens o poder transformador e sagrado do fogo.
um abraço, tinta permanente, com saudades,muitas e acrescidas nestes dias, do nosso minho e galiza…
Fiquei com pena de S. Jorge!
Isto é um povo mesmo mal agradecido…
Logo aparecem arraiais com o Frei Nuno de Santa Maria! :-))
Abraço
Eu fico-me pelas comemorações do S. Pedro, pelo menos acerta no tempo, ora chuva, ora sol…:)
Beijinho*
Eu gosto dos três Santinhos e depois de ler-te até do S.Jorge.
Gosto destas coisitas de festejos, arquinho e balão, saltar fogueiras, manjericos e alcachofras…provávelmente pelas minhas memórias de outros tempos (e porque sou da populaça)…e em Junho há sempre um cheirinho a manjerico, aqui em casa
O senhor desculpe eu não comentar, mas é que ando tão baralhada…
Reiterados e respeitosos cumprimentos.
os santos populares começaram há séculos, pelo menos com os Lusitanos. Festejo do equinócio de verão onde as fogueiras ficavam acesas treze dias até ao dia do próprio equinócio. Honra à luz, dia profético onde o oráculo era consultado
fiz a noite em casa… com sardinhas, pois então e um manjerico com quadra e tudo!
as marchas… deixei-as para outros
menos "caseiros"
beijinhos
Olha que belo percurso, este, pelos anos da história e por uma Lisboa que hoje não deixa ver o que aqui mostras. Ainda assim, olha que o passeio pode ser bem bonito, da Sé à Penha de França, da Baixa ao Castelo de S. Jorge, passando pela Praça da Figueira…
Avisa quando te decidires a vir ao arraial mouro, e eu peço que ponham a Alma de Diós a tocar, e que se acendam mil fogueiras e que se queimem alcachofras como dantes!
Não conhecia a do Ferrolho. Gostei de aí ver a Severa. E essa bela forma de escreveres as coisas…!!!
De sexta para sábado, em Odemira, a sardinha e o caldo verde eram oferta do santo padroeiro da terra.
Pois é… Baldei-me ao santinho de Lisboa quando descobri que afinal ele não concede a satisfação plena dos desejos como dizias no texto. É que ouvi dizer que "enquanto todas as mulheres se casam pensando que seu homem irá mudar, todos os homens se casam pensando que sua mulher nunca mudará. E, invariavelmente, ambos se desapontam". Vai daí, fica difícil pedir milagres aos santos!
🙂
Abraços e manjericos!
Ah, "do Porto já se escreveu", mas para mim nunca é demais, tá bem?…
às vezes eu descubro blogs fantástico; outras vezes, blogs fantásticos descobrem o meu!
Gostei MUITO. ÍSSIMO.
Cheguei para ficar 🙂
Parabéns por este excelente texto, que me ensinou novos caminhos.
Desdichado (gostei desta:)) mas corajoso
Desditoso mas que a desdita não o diz
Pois ainda tem quem se lembra
E o faça renascer, assim feliz 🙂
Beijos
Levo o papo cheio.
Sabe-me bem aprender. Assim. Como uma estória da história.
Bem hajas, abraço
Meu rico Santo Antoninho
Faz um milagre pr'a gente
Dá saúde e alegria
Sempre, ao "Tinta Permanente"
E, se não for pedir muito,
(eu nunca te peço nada!)
Dá-lhe bons anos de vida
E uma bela "namorada"
E já que te incomodei
Faz-me ainda outro favor,
Dá-lhe uma "vida de rei"
Com beleza, paz e amor
E que ele nunca se canse,
De nos fazer aprender
"Coisas do arco da velha"
Porque tudo é bom saber
E se ele não gostar
Destas quadras tão banais,
Diz-lhe que foi a brincar,
E eu já não lhe mando mais.
P'ra contar a tradição
Rigorosa e atraente
Só mesmo aqui pela mão
Desta tinta permanente
Sempre muito bom.
:)))
Hoje, toda a tradição tão bem contada por ti está transformada nuns festejos de plástico para turista ver e serem transformados num "directo" televisivo…
Triste!
Um beijo de bom fim de semana e salve-nos São Pedro:))
Muito interessante o post aos santos populares tão festejados em todo o país. Hoje, à noite, salta-se a fogueira, de alecrim, nove vezes, enquanto se diz : "louvor a Santo António".Quem está solteiro deposita crédito no santo milagreiro.
Beijinhos
Tinta permanente
sabe suma coisa? deste-me vontade de voltar a este tempo. Mas eu tenho muitos e enormes defeitos, um deles é o detestar multidões, por isso fico-me por aqui. O máximo é ir a casa de amigos e ficarmos pacatamente a festejar os santos com a criançada que aumenta de ano para ano…
bjs
Como sempre, um texto aonde há o que se aprender. Usos, costumes, tradições, história de um ou mais tempos colocados aqui para nosso conhecimento, para o prazer de uma boa leitura.
Um abraço
Vim te agradecer a visita em dia de festa lá na árvore.
Quando vivi aí festejava (e bem) o São Pedro por morar num lugar chamado São Pedro da Gândara.
abraços em dia de chuva por aqui
"Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
cancões no vento que passa"
E a cada Santo sua vela
a S.Jorge vai minha devoção
queiram os outros ou não
ontem foi seu dia na oração 🙂
Amanhã será S.António
e eu nem folia me apetece
Ai, Santo da minha cidade
tanto que a vida nos tece!!!:)
E aqui deixo um MUITO obrigada
pela História aqui narrada…
em que os Santos, por senhores
são adorados conforme as dores 🙂
E qual Santo, meu senhor
Quererá andar hoje no andor?
E Lisboa agradece ladina
no seu canto de sereia pequenina 🙂
Beijo meu com sorriso
na procissão de santo esquecido
e um bom fim de semana
que também é preciso!! 🙂