os nomes


Quem nasceu, viveu ou muito cirandou pelos arribanceirados do Minho, aqui ou ali lhe apanhou peculiaridades tão próprias quanto, por vezes, estranhas e divertidas…
Olhe lá para a fotografia: que nome dá aquela rama do pinheiro? Pois!, agulhas.
E mais? Caruma? Certo! E mais, hã?!…

Quantos acrescentarão um ou outro nome? Poucos, muito poucos…
Ora, então, veja aqui comigo outros nomes que as agulhas do pinheiro têm para as gentes do Alto Minho. Eles são…
Argaço, agulheta, arguiço, branza, candeia, chamiço, carumba, cisca, carunha, caruma, fagulha, faúla, faúlha, fasco, fandango, feno, foupa, frangalho, fungalho, gravanha, gravalha, gravulha, irguiço, moanha, mavalhada, metano, mofo, molosso, munha, pinho, promisca, pruma, rapão, sama e sarafulha.
Eu que de cá sou, bem acredito ter esquecido – ou ainda não saber… – algum!

a estalagem em Belém

ele era grande, mas depois foi mais grande

O Inverno abria cedo os portões do entardecer. Mas nem por isso, naquele dia, a ladeira da Corga acoitava o silêncio, que ao arresto da aragem havia gente a caminho do chão cimeiro, onde as janelas da velha escola pareciam azulejos de luz sobre o veludo negro da noite. A professora Adosinda tinha aberto o portão, já fechado há cinco anos, desde que, de voltas trocadas pela modernidade, os sete pequenitos de Milheiros passaram a ir no carro de praça do senhor Duarte para a escola grande de Vila Verde.
No recreio, apojado de ervas e calado de risos e garotices, um pinheiro alindado com bolas e luzes coloridas guardava a porta da sala de aulas. Lá dentro, exceptuando algumas cadeiras de madeira velha, recurvas e empenadas pela artrite de muitos inverneiras, todo o espaço da sala estava vazio, que o resto da tralha foi cuidadosamente guardado lá nos fundos, na pequena arrecadação.
A professora tinha aproveitado essa porta para criar ao redor, todo o cenário da representação que tinha preparada para essa noite.
Amanhã era a noite da Consoada e por isso, hoje, José e Maria iriam chegar a Belém. Conforme diz a história de Jesus, depois de não conseguirem guarida na cidade, seria num pequeno estábulo, nas cercanias, que achariam remedeio de aconchego para à noite acautelar os cuidados com o nascimento do Menino. Esse era o tema da representação de hoje, que amanhã o presépio todo iluminado, já estará no adro da igreja da Senhora das Mercês, ali na cumeeira da quebrada.
Para que o teatrinho ganhasse mais querença e o gosto do povo, a senhora professora acertou com o Américo da Covelinha o empréstimo da burra que, com a Ermelinda a representar a Virgem e o Daniel no papel de José, havia de chegar do fundo da ladeira até à porta da escola. Depois, Maria e José, encarrapitados na arte aprendida nas últimas aulas, irão chegar à estalagem – a porta da arrecadação, ao fundo da sala de aulas – e o pano vai subir.
Vem aí a Maria da Anunciação com a mãe, a senhora Laurinda. A Anunciação traz um banco, que a mãe já tem as pernas bambas e fracas. O ti’Arlindo vem lá mais ao fundo, com a mulher e os dois ganapos. Além parece que é a Emília da Portela com o homem e mais outras três ou quatro almas ainda chupadas na noite. Uns vêm com os mochos da lareira, três trazem cadeiras e outros chegam sem nada. Na ourela do caminho, as árvores já recolheram as sombras do chão e ficam-se embrulhadas nelas, quedas, para dormir.
À hora apregoada para o quadro teatral da véspera da noite de Natal, todos estão dentro da sala. O Cláudio já foi lá baixo dizer ao senhor Américo para tirar a burra da carroça e mandar a Ermelinda e o Daniel com ela para cima. Uma cotovia piou, a burra zurrou o incómodo de saltar para o chão, os miúdos ajeitaram-se às personagens e um cão virou-se do avesso de tanto se coçar..
Já estava a jumenta à vista da escola quando, dentro da sala, pararam-se todas as conversas e o sino da igreja bateu as nove horas; a professora disse boa-noite e logo a seguir, devagarinho, as palavras solenes que abriram o palco à representação. A cotovia voltou a dizer que sim.
Ouviu-se a burra a arfar e o som de alpercatas no lajedo da entrada. Em passo certinho de ensaio entram Maria e José e pausadamente, interiorizando a quebreira de uma longa viagem desde Nazaré, chegam-se à porta da estalagem – a explicada porta dos arrumos, está claro! Guiando Maria com ternura, José bateu à porta da hospedaria.
A professora tinha colado ao chão, por detrás da porta, um pouco de areia que, ao abrir, causou o efeito desejado de parecer arranhar a curiosidade dos espectadores.
Vindo do outra banda do escuro, surge o albergueiro.
A mestra, com alguma ardileza, procurou uma forma de tornar equitativa a divisão de protagonismo naquela singela representação. Quem apareceu à porta foi o Armando.
Filho da Ana e do Simão, há muitos anos rendeiros na Quinta dos Lilases, já eram um quanto avelhantados quando o rapaz nasceu. Agora, com dez anos, um bocadinho entropeço, estava na segunda classe, apesar de dever estar na quarta. Era grande, desajeitado e lento de movimentos, mas todo mundo na escola gostava do Nando. Era um meninão que sentia prazer em ajudar, sempre cheio de boa vontade, desengonçado e sorridente, protector natural dos companheiros mais pequeninos.
Ao Armando agradava a inchada ideia de ser um pastor com sua flauta, na peça de Natal desse ano, mas a senhora professora achou que ficava melhor dar-lhe um papel mais importante. Afinal de contas, pensou ela, o estalajadeiro não tem muito que falar, e a estatura dele, sim, faria com que sua recusa de hospedar José e Maria fosse mais imperiosa, tivesse mais impacto. Fosse qual fosse a razão, ninguém estava mais enfeitiçado pela magia dessa noite do que o rapagão.
– Que é que vosmecê quer? – perguntou, brusco e tonitruante o estalajadeiro.
– Estamos exaustos, a noite está fria, vimos à procura de um lugar para pernoitar.
– Aqui não!…  – Armando ficou com um olhar meio perdido, mas falou com algum vigor  – Está tudo cheio! – disse-o num repelão.

– Senhor, condoa-se de quem tem procurado em vão por toda parte.  – sussurrou José.
– Nesta estalagem não há lugar para vocês, já disse! – respondeu Armando elevando a voz com sinais de indisfarçável irritação.
– Por favor, meu bom estalajadeiro, esta é minha doce mulher, Maria. Ela está grávida, quase a ter uma criança e precisa descansar. Pouco se aquietou desde que, há longos dias, partimos de Nazaré. Certamente haverá por aí um canto, por muito pequeno que seja. Ela está tão cansada! Não nos negue uma migalha de misericórdia senhor…  – o Daniel foi perfeito na postura quebrada e no tom sofrido que deu à voz.
Pela primeira vez, o estalajadeiro afrouxou sua aparência hirta e enrubescida e olhou Maria. Depois, inexplicavelmente, houve uma longa pausa, longa o bastante para que a assistência ficasse um pouco tensa e embaraçada.
– Não! Vão embora!  – sussurrou a professora, a fazer de ponto, do banquinho onde se sentara, mais à frente dos outros.
– Não…  – repetiu Armando automaticamente  – Vão embora! – terminou um tanto sumido.
José mostrou um ar de profunda tristeza; colocou seu braço pelos ombros de Maria e esta, com um suave e profundo suspiro, deixou cair a cabeça no ombro de seu marido, e ambos começaram a afastar-se. A Ermelinda e o Daniel representaram tão à vontade como talheres no prato.
O hospedeiro, porém, ao contrário do que havia sido nos ensaios não voltou para dentro de casa. Ficou no limiar da porta, especado, de olhos esbugalhados presos no combalido casal que se ia afastando. A sua boca estava aberta, as sobrancelhas aperreadas; foi o tempo de um fósforo para que os olhos começassem iniludivelmente a ficar marejados de lágrimas.
De súbito, aquela bucólica e ingénua representação de Natal virou-se de cangalhas e tornou-se algo de bem diferente do que esperavam aquela santa gente da plateia.
Não vão embora! – gritou o Armando. A voz saí-lhe atravancada – Voltem aqui!
E, de um lampejo, o rosto de Armando brilhou com um enorme sorriso. Liberto de amarras, a  voz saiu-lhe sôfrega, aos supetões:

– Vocês podem ficar, sim. No meu quarto!
(do livro Contos de Réis)