as hortaliças em Portugal, nos finais do século XVI

O assunto parece comezinho. Mas não deixará de vir a propósito quando a Medicina tanto recomenda aos doentes a ingestão de vegetais. E, para além disso, até vem ao calhas uma pitada de humor sobre a dúvida da amiga Maria da Graça acerca do que contei sobre a… tripeça.
Ora vejam com tudo se encaixa…

Para isso socorro-me da prosa quinhentista de Duarte Nunes de Leão que, pelo sim e pelo não, sempre vou lembrando que, provavelmente alentejano eborense, viveu os últimos setenta anos do século dezasseis e teria morrido em Lisboa, no ano de 1608; foi um notável jurisconsulto, historiógrafo, estudioso de línguas e desembargador da Casa da Suplicação. A sua obra é rica, embora não vasta, onde ressalta a Orthographia de Língua Portugueza e a Descrição do Reino de Portugal, em cujo prefácio escreve seu sobrinho Gil Nunes de Leão:
Este livro acabou o Doctor, meu tio, de compor nos termos em que estava, no ano de 1599, estando neste tempo recolhido na vila de Alverca, por causa do mal de que Deus nos livre, que enton houve neste regno.
Valeu-lhe o refúgio, pois Duarte Nunes escapou do terrível flagelo da chamada peste grande…
Nesta Descrição do Reino de Portugal, intitula Duarte Nunes o capítulo XXXII  Da muita hortaliça que há em Portugal. E é daí que transcrevo, na integra:
‘Não é pequena parte do mantimento para sãos e para doentes, a hortaliça que se dá em Portugal, que é quanta querem; assi por a bondade da terra e clemencia do ar, como por a muita copia de agua, que é a principal cousa com que se cria. Polo que, em todos os logares onde a agua e cultura não falta, hi ha grande abundancia, mórmente a terra é apta onde para as cousas, como são as grandes couves que de Murcia onde ha muitas, tomaram o nome Murcianas, as quaes, na banda de além de Lisboa e Alem-Tejo, na cidade de Beja e vila de Viana, junto de Evora, se dão e em Vila do Conde e Caminha de Viana do Lima, de que algumas são tão grandes que, quando as querem partir para a panela, o fazem com um machado ou manchil, tão duras são e assim partem de uma o que hão mistér para a panela aquêle dia e d’esta maneira a vão comendo a pedaços. E, por monstruosidade, as vi já mandar de Vila do Conde á corte de presente.
E, em muitas partes da Beira, há tamanhos nabos que se assentam neles ao fôgo como em tripeças e d’eles vão cortando pouco a pouco o que querem para a panela, até que o assento fica pequeno e então poem outro para se assentar.
Na cidade de Beja se dão tão grandes cardos que, achando-me eu, por acaso, em uma horta, vi que, havendo diferença entre um comprador e o hortelão, sobre o preço de um cardo, disse o hortelão que o levaria de graça se o levasse ás costas até á cidade, a qual distava d’ahi a um quarto de legua. E posto que era valente homem e de qualidade que não lhe ficaria mal levar um cargo ás costas o não aceitou por não se cansar. E pouco menores se dão na cidade de Evora e nas vilas de Moura e Serpa e em Lisboa, que é um terreno feracissimo.
Em Alentejo se dão tamanhas cebolas que uma cobre um bom prato. D’esta herva ha tanta copia em todas partes d’Entre Douro e Minho, vila de Viana e outros logares  que saem assim para Lisboa muitos navios carregados d’ela e assi de alhos, que vendem por pouco preço.
Na cidade de Coimbra se faz feira cada ano, dia de S. Bartolomeu, onde quasi não ha outra coisa mais que alhos e cebolas, que vêm dos lugarinhos comarcãos, que é para ver a multidão que há d’aquelas cousas…

A fermosura e copia de hortaliça, que se dá em Lisboa é cousa para ver e a frescura que causam aquelas misturas de cheiros desvairados a quem passa pela praça onde se vendem. O mesmo é em Evora, onde a hortaliça dura mais tempo verde e com bom cheiro, por não estercarem tanto as hortas, como fazem em Lisboa, para haverem muitas novidades em pouco tempo.
Não havia nos tempos passados chicória, que por outro nome chamam escarolas e almeirões, herva boníssima em sabor e virtude para sãos e para doentes; semearam-se e aprenderam a alporcá-las, dão-se agora tão fermosas e taes que parecem feitas de cera branca.
Não costumam também os portugueses semear melões de inverno e parecia-lhes coisa nova, quando os viam. Pelo que os regalados, que os desejavam, os mandavam vir de fóra, e quando cá chegavam vinham podres e com muito custo. Semeiam-nos agora e dão-se tão finos e tantos ha já que, d’aqui os podem carregar para fóra. E têm carregado, pois, ainda actualmente, é abundante a sua exportação…
Mas Sr. Desembargador, se não ha exagero nas vossas alusões às couves de Vila do Conde, cortadas à machada para meter na panela – pobres cozinheiras -, aos monstruosos nabos da Beira, aos cardos de Beja e às cebolas do Alentejo, que tamanho descomunal não representam e como fariam a fortuna das hortaliceiras das praças lisboetas que, devido aos cuidados higiénicos das vereações, não devem hoje exalar piores fragrâncias do que as referidas pelo observador jurisconsulto. Mas ele exalta, como bom gastrónomo, a novidade das chicórias e dos melões de inverno. Das chicórias a quem D. Francisco Manuel de Melo, na sua Feira dos Anexins, atribue as seguintes expressões: Nós somos taes que podem meter-nos na boca a um doente; e quem diz que não damos flôr nem fructo, mente e remente…

Verdade, verdade, o que entretanto mais nos põe boquiabertos é o gigantesco tamanho dos nabos da Beira, aliás também registado, na língua de Cervantes, por Faria e Sousa na Europa Portuguesa (pág. 182) nos seguintes termos:
(...) en muchas partes ay nabos que sirven de assiento a los rústicos que de Invierno estan al fuego, y deles mismos van cortando y guisando, asta que hallando poco assiento toman outro (…)
Em todo o caso, leitoras das terras beiroas, se vos quiserdes aquecer às vossas lareiras nas longas e frias noites de Inverno, cuidai-vos, não confieis nesses bucólicos assentos de que vos falam os clássicos citados, que podem muito bem atraiçoar-vos…
Por aqui se vê que a distância da hortaliça à tripeça é apenas o tamanho de um nabo! Ou não?…

as encruzilhadas

Por vezes assaltam-me encobertas recordações de mitos e realidades de juízes ou deuses que, de quando em quando, eu encontrava nas encruzilhadas nos meus caminhos solitários pelo campo, quase sempre nas dobras das tardes já encostadas à meia-luz, junto de algum monólito de alminhas, bárbaras ou devotas.
Era uma presença quase palpável, mas invisível. Eu sentia-a ali, vinda de muito longe, de tempos já sem memórias, sempre a mesma para todos quantos por lá passassem, idos ou vindos do seu próprio destino, e que sempre tiravam o chapéu ou gesticulavam uma benzedura, mergulhados num piedoso ou amedrontado recolhimento.
Só a essa hora aparecia, esse deus crepuscular, emergindo pouco a pouco não sei se do profundo da alma que se atemorizava, se da penumbra envolvente, se das entranhas do ser ancestral que era adorado numa prostração, num arrepio de medo recôndito. Surdos guinchos, rouquejos, zumbidos, volteavam na luz já coada, povoando o ar de frémitos de sobrenaturalidade.
Sobrava-me o azedo duma agastada impressão de idolatria, de arcaísmo, a esse deus dos ermos e taciturnos atravessamentos, no debruado do anoitecer!
As encruzilhadas, segundo a superstição popular, sempre foram lugares perigosos onde se reúnem e acoitam seres maléficos; perde-se no tempo o costume de tentar obter protecção divina ao atravessá-las, fosse com gestos rituais, como a persignação, fosse com a colocação de oratórios às alminhas do Purgatório com feitios e materiais diversos, decoradas com uma cruz ou a figura de um santo.
É tenção cuidar da Vida, que ela é a soma de muitas encruzilhadas.