Pouco conhecido será, talvez, o facto de Garrett ter sido obrigado a usar cabeleira postiça, em consequência de um desastre com cavalo ocorrido na sua adolescência e que o condenara a ficar para o resto da sua vida sem qualquer possibilidade de ter mais um cabelo que fosse na cabeça (1).
Quem o refere, numa alusão um tanto chalaceira, é o seu biógrafo Gomes de Amorim que, a dada altura, escreve:
(…) o chinó era pois, para o autor de Folhas Caídas, uma necessidade, de que os ‘os chatins que lhe mordiam a sombra se inspiravam para os seus chochos epigramas’ e de que ele, por seu lado, conseguiu fazer disso um elemento assanhado de pessoal peralvismo.
Está o divino Poeta à porta da Livraria Bertrand, conversando com vários amigos. De repente, consulta o relógio e dispara esta:
– Bom! Três horas. Vou cortar o cabelo.
E atravessando desempenado a flamante a calçada, enfia-se na casa do Godeffroy, deixando boquiabertos os circunstantes.
Comentando o caso, resolveram esperar o amigo, no intuito de ver satisfeita uma legitima curiosidade: o de verificar como Garrett conseguiria ter cabelo para cortar!
Quarto de hora passado, sai o Poeta da loja do cabeleireiro, posto o chapéu em cima de uma cabeleira… mais curta.
– Pronto! Agora estou mais leve, e vou-me ao jantar! – dizia Garrett aos amigos, com a maior naturalidade deste mundo, e sem parecer dar pela espécie de enleio em que todos ficaram.
Foi-se.
Então, o Dr. Tomás de Carvalho, tomando à sua conta esclarecer o caso, atravessou a rua, e entrando na loja do cabeleireiro dos grandes elegantes do tempo:
– Diga-me, não esteve agora aqui o Sr. Visconde de Almeida Garrett a… cortar o cabelo?
– Esteve, sim senhor, – respondeu Godeffroy, sorrindo – e foi servido.
– Olhe lá, ó Godeffroy, explique-me, se não sou indiscreto, como lhe faz o senhor essa… operação?
– Com muito gosto, Sr. Doutor. Faz favor… – e levando o interrogante a um gabinete próximo, o dono da casa abriu um armário e patenteou aos olhos ávidos de curiosidade do espirituoso amigo de Garrett, uma colecção de cabeleiras, mais ou menos longas.
– E depois?… – insistiu o Dr. Tomás de Carvalho, mirando aquela singular exposição.
– É simples: – concluiu Godeffroy – cada uma destas cabeleiras tem o seu número, e todas pertencem ao Sr. Visconde, que sabe de cor a correspondência dos números aos diferentes tamanhos. Quando ele quer mudar de cabeleira, para maior, ou para menor, basta dizer-me ‘hoje pomos a números tantos’. Venho buscá-la, tiro a outra, coloco a preferida, penteio-a, aperto os ‘boucles’ a ferro e pronto; cortou o Sr. Visconde o cabelo…
– Percebo, se ela é, como hoje, mais curta do que a que o Visconde cá deixou…
– Na hipótese contrária, – completou o bem-falante Godffroy – figura-se que o Sr. Visconde tem o cabelo já um tanto crescido, e precisa de um aparo, então coloca-se outra cabeleira também um tanto mais comprido, seguindo-se gradualmente o mesmo processo até…
– Até ser preciso ao Visconde tornar a cortar o cabelo! – rematou o Dr. Tomás de Carvalho, um tudo nada chocarreiro.
– Tal e qual, Sr. Doutor…
– Estou inteirado, meu caro Godffroy; os meus agradecimentos pelas suas elucidativas explicações.
E foi deste modo que os amigos ficaram a saber como Garrett cortava o cabelo, ou melhor: como Godffroy lho cortava. (…)
Este trecho, refere Gomes de Amorim, situa-se por volta do verão de 1852. Concluiu isso, sabendo a época do ano a que alude, acrescentando o facto de João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett ter sido tornado Visconde, por decreto de 25 de Junho de 1851, assinado por D. Pedro V.
(1) – Embora não fosse completamente desprovido de cabelo, já que usava suíça curta e pequena pêra.